Cântico I
Não queiras ter Pátria. Não dividas a terra. Não dividas o céu. Não arranques pedaços ao mar. Não queiras ter. Nasce bem alto. Que as coisas todas são tuas. Que alcançará todos os horizontes. Que o teu olhar, estando em toda parte Te ponhas em tudo, Como Deus. (Cecilia Meirelles) ***
Carlos Drummond de Andrade
HIPÓTESE E se Deus é canhoto e criou com a mão esquerda? Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.
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Fernando Pessoa
(...) Vi todas as coisas, maravilhei-me de tudo, Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri. vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos, E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse, Amei e odiei como toda a gente, Mas para toda a gente isso foi normal e institivo. E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo. (...)" Álvaro de Campos em Passagem das Horas
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GO BACk
Você me chama Eu quero ir pro cinema você reclama meu coração não contenta você me ama mas de repente a madrugada mudou e certamente aquele trem já passou e se passou passou daqui pra melhor, foi!
Só quero saber do que pode dar certo não tenho tempo a perder
você me pede quer ir pro cinema agora é tarde se nenhuma espécie de pedido eu escutar agora agora é tarde tempo perdido mas se você não mora, não morou é porque não tem ouvido que agora é tarde - eu tenho dito - o nosso amor michou (que pena) o nosso amor, amor e eu não estou a fim de ver cinema (que pena) Torquato Neto
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DELÍRIOS II ALQUIMIA DO VERBO
Para mim. A história das minhas loucu- ras. Há muito me gabava de possuir todas as paisagens possíveis, e julgava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia mo- derna. Gostava das pinturas idiotas, em por- tas, decorações, telas circenses, placas, iluminuras populares; a literatura fora de moda, o latim da igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos antepassa- dos, contos de fadas, pequenos livros in- fantis, velhas óperas, estribilhos ingênuos, rítmos ingênuos. Sonhava com as cruzadas, viagens de descobertas de que não existem relatos, re- públicas sem histórias, guerras de religião esmagadas, revoluções de costumes, des- locamentos de raças e continentes: acredi- tava em todas as magias. Inventava a cor das vogais! - A negro E branco, I vermelho, O azul, U ver- de. Regulava a forma e o movimento de cada consoante, e , com ritmos institivos, me vangloriava de ter inventado um verbo poético acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos. Era comigo traduzí-los. Foi primeiro um experimento. Escre- via silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens. Rimbaud ***
NERUDA POEMA XVIII Os dias não se descartam nem se somam, são abelhas que arderam de doçura ou enfureceram o aguilhão: o certame continua, vão e vêm as viagens do mel à dor. Não, não se desfia a rede dos anos: não hà rede. não caem gota a gota de um rio: não há rio. O sonho não divide a vida em duas metades, nem a ação, nem o silêncio, nem a virtude: a vida foi como uma pedra, um só movimento, uma única fogueira que reverberou na folhagem, uma flecha, uma só, lenta ou ativa, um metal que subiu e desceu queimando em teus ossos.
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A ROSA DE HIROSHIMA
Pensem nas crianças Mudas telepáticas Pensem nas meninas Cegas inexatas Pensem nas mulheres Rotas alteradas Pensem nas feridas Como rosas cálidas Mas oh não se esqueçam Da rosa da rosa Da rosa de Hiroshima A rosa hereditária A rosa radioativa Estúpida e inválida A rosa com cirrose A anti-rosa atômica Sem cor sem perfume Sem rosa sem nada.
Vinicius de Moraes
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